O último Plano de Acção da União Europeia sobre Doação e Transplante de Órgãos terminou em 2015, deixando uma lacuna no quadro político numa altura em que as necessidades de transplante estão a aumentar. À medida que os Estados-Membros enfrentam uma procura crescente, desigualdades persistentes no acesso e uma atenção limitada aos cuidados de longo prazo aos pacientes, uma estratégia renovada da UE torna-se urgente.
Nesta entrevista à Diário da Feira, a eurodeputada Elena Nevado del Campo (Espanha, PPE) discute as prioridades para um novo Plano de Acção, desde a melhoria da disponibilidade de órgãos e recolha de dados até ao reforço do apoio psicológico, transplante pediátrico e medidas de resultados relatados pelos pacientes em toda a Europa.
EV: Em maio de 2025, apelou a uma atualização do Plano de Ação da UE sobre Doação e Transplante de Órgãos. Quais são as principais áreas em que considera que a actual abordagem da UE é insuficiente?
NDC: O último Plano de Acção terminou em 2015. Desde então, o contexto mudou significativamente. A procura de transplantes continuou a crescer, impulsionada pelo envelhecimento da população e pela maior prevalência de doenças crónicas. Vimos também como a pandemia de COVID-19 causou grandes perturbações nos programas de doação e transplante, com uma redução significativa da atividade em muitos Estados-Membros.
Até hoje, falta-nos um quadro europeu atualizado para reforçar a disponibilidade de órgãos e os cuidados a longo prazo para pacientes transplantados. Enfrentamos também grandes desigualdades entre países em termos de acesso, acompanhamento clínico e inclusão de elementos como saúde mental e qualidade de vida.
Estas limitações também foram destacadas pelo Conselho da União Europeia nas suas Conclusões de dezembro de 2024. É por isso que é prioritário definir um novo roteiro europeu que dê resposta aos principais desafios da atualidade.
EV: Que prioridades devem ser centrais num Plano de Acção renovado e como este pode ir além da aquisição de órgãos para abordar os cuidados de longa duração e a qualidade de vida?
NDC: O novo Plano de Acção deve adoptar uma abordagem abrangente a todo o processo, desde a doação até ao acompanhamento do paciente. Melhorar a disponibilidade de órgãos continua a ser uma prioridade, mas hoje também precisamos de fazer progressos noutras áreas, como a coordenação médica, os cuidados pós-operatórios, o apoio psicológico e o acesso à reabilitação.
As diferenças entre os países na qualidade dos cuidados pós-transplante são significativas e é necessário um esforço conjunto para reduzi-las. Devemos também investir em sistemas que permitam a recolha e comparação de dados sobre resultados clínicos e bem-estar dos pacientes em toda a União, de forma harmonizada.
Sem essa informação não podemos melhorar. O novo plano deverá também ser apoiado por ferramentas digitais, formação especializada e fortalecimento de redes de colaboração entre centros e profissionais.
EV: Você tem falado abertamente sobre a necessidade de mais atenção ao transplante pediátrico na política da UE. Porque é que esta é uma área que merece maior atenção e como poderão os apelos do Horizonte Europa ou do programa EU4Health apoiá-la melhor?
NDC: Os transplantes pediátricos requerem atenção personalizada do ponto de vista médico, psicológico e social. As crianças transplantadas devem conviver com o órgão por muitos anos, o que implica acompanhamento específico, possíveis reintervenções e apoio nas diferentes etapas do seu desenvolvimento.
Além disso, as famílias também necessitam de orientação e apoio contínuo para enfrentar os desafios de cuidar de uma criança transplantada. Apesar destas particularidades, a abordagem pediátrica ainda está subrepresentada nas políticas europeias.
Atualmente, programas como o Horizonte Europa e o EU4Health poderiam colmatar esta lacuna, promovendo linhas específicas de investigação, melhorando a continuidade dos cuidados desde a infância até à idade adulta e apoiando projetos que reforcem os cuidados integrais nestes casos.
EV: Que lacunas na investigação ou no apoio vê quando se trata de crianças que vivem com órgãos transplantados, particularmente em áreas como a gestão da rejeição e o apoio psicológico?
NDC: Ainda há muitas questões não resolvidas. Precisamos de mais estudos de longo prazo sobre os efeitos do transplante em crianças, sobre a adesão ao tratamento imunossupressor durante a adolescência e sobre como adaptar os protocolos clínicos às diferentes fases de crescimento.
Em muitos países não existe uma integração real entre o acompanhamento clínico e o apoio psicológico, embora ambos sejam fundamentais para a evolução do paciente. Também não existem dados comparáveis suficientes a nível europeu sobre os resultados na população pediátrica. A UE deve promover a investigação específica neste domínio e facilitar o desenvolvimento de mecanismos comuns para recolher e comparar dados de forma harmonizada em toda a União, a fim de apoiar decisões baseadas em evidências.»
EV: Como pode a UE apoiar melhor os Estados-Membros no reforço dos cuidados pós-transplante, especialmente no caso de complicações crónicas como a doença do enxerto contra o hospedeiro ou a rejeição prolongada de órgãos?
NDC: Um dos elementos-chave é o reforço da cooperação entre os Estados-Membros. A UE pode contribuir promovendo o intercâmbio de boas práticas, financiando redes de centros especializados e facilitando a formação contínua de equipas médicas.
É também importante avançar para sistemas de acompanhamento digitais que permitam uma monitorização mais precisa das complicações a longo prazo. Além disso, devemos adoptar uma visão positiva. O novo QFP, no âmbito do Fundo para a Competitividade, inclui uma dotação específica para a saúde, a biotecnologia e a bioeconomia no valor de 20 mil milhões de euros, aumentando efetivamente o orçamento atribuído a estas áreas em comparação com o quadro anterior. Isto torna possível financiar tais centros especializados no futuro.
EV: Apoiaria as directrizes ou mecanismos de coordenação da UE para garantir que os sobreviventes de transplantes em toda a Europa tenham acesso equitativo a cuidados de acompanhamento, reabilitação e serviços de saúde mental?
Considerando que a saúde pública é uma competência dos Estados-Membros, é verdade que a UE pode emitir recomendações ou orientações. As diferenças actuais entre países nestes tipos de serviços são significativas. Algumas pessoas recebem um acompanhamento abrangente e contínuo, enquanto outras mal têm acesso a exames básicos.
A criação de orientações da UE ajudaria a melhorar a qualidade dos cuidados, aumentaria a transparência e proporcionaria uma base partilhada sobre a qual cada Estado-Membro poderia construir as suas políticas. O acesso à reabilitação, à saúde mental e ao apoio familiar deve fazer parte do processo pós-transplante, não como elemento complementar, mas como componente essencial do sucesso clínico e pessoal.
EV: Há um consenso crescente em torno da necessidade de uma melhor recolha de dados em toda a UE sobre os resultados dos transplantes. Como pode a UE facilitar isto sem sobrecarregar os sistemas nacionais?
NDC: A chave reside em oferecer soluções úteis, interoperáveis e tecnicamente viáveis. Os sistemas nacionais não devem enfrentar novos encargos administrativos, mas sim receber apoio para melhorar a recolha e análise dos dados que já geram. A UE pode facilitar isto financiando ferramentas digitais inovadoras, proporcionando formação técnica e promovendo plataformas comuns que permitam a comparação anónima e segura de resultados. É também importante integrar estes sistemas com os registos existentes, garantindo sempre o cumprimento da legislação de proteção de dados. Ter informações confiáveis é fundamental para identificar melhorias, planejar recursos e avaliar o impacto das políticas públicas.”
EV: Quão importante é a integração das Medidas de Resultados Relatados pelos Pacientes (PROMs) na definição de políticas futuras e nas decisões de financiamento sobre transplante e sobrevivência?
NDC: É essencial. O paciente deve estar no centro do sistema. Avaliar um transplante apenas em termos de sobrevivência ou função orgânica é insuficiente. Precisamos de compreender como vive o transplantado, o seu nível de bem-estar, a sua capacidade de regressar ao trabalho ou a sua autonomia. Os PROM fornecem esta informação fundamental e devem ser integrados tanto na avaliação clínica como na tomada de decisões políticas.
EV: Acredita que a I&D relacionada com transplantes, especialmente em áreas como a imunossupressão personalizada ou a previsão de rejeição, recebe atenção adequada nos actuais programas da UE?
NDC: Embora a União Europeia não tenha competências diretas na organização dos sistemas de saúde, pode e deve desempenhar um papel decisivo na prevenção. No domínio da transplantação, a prevenção não se limita a evitar a rejeição de órgãos; envolve garantir a estabilidade clínica do paciente e a qualidade de vida a longo prazo.
Isto requer acompanhamento adequado dos tratamentos imunossupressores, detecção precoce de complicações crônicas e apoio psicológico contínuo. Actualmente, estas dimensões preventivas estão sub-representadas nos programas europeus.
Esperamos que o próximo Quadro Financeiro Plurianual financie projetos destinados a dar resposta a essas necessidades. Uma política europeia centrada na prevenção ajudaria a reduzir as desigualdades, a melhorar os resultados e a aliviar a carga a longo prazo sobre os sistemas nacionais de saúde.
EV: Que papel pode o Parlamento desempenhar para garantir que os futuros orçamentos da UE dão prioridade aos resultados a longo prazo e à inovação na medicina de transplantes?
NDC: O Parlamento tem a responsabilidade de garantir que uma abordagem de longo prazo seja incorporada nas políticas de saúde europeias. Isto significa garantir que os recursos sejam direcionados não apenas para a resposta a emergências, mas também para a consolidação de soluções sustentáveis e baseadas em evidências. Na área dos transplantes, isto significa dar prioridade à qualidade de vida, apoiar a inovação clínica e tecnológica e reduzir as desigualdades entre os países.
Enquanto Partido Popular Europeu, trabalhamos para garantir que estas prioridades se refletem no futuro Quadro Financeiro Plurianual, nos programas de saúde e investigação, e também nas políticas de coesão, educação e digitalização.
O objetivo final é claro: garantir que todos os pacientes transplantados recebam cuidados contínuos e de qualidade, em condições equitativas e com uma abordagem centrada no paciente.
(BM)




